
Eis um personagem que me surpreende.
Quando se é jovem, pensamos que os problemas do mundo ligam-se à escassez: faltam recursos, falta inteligência, falta cultura. Com o tempo vamos percebendo que o problema é muito pior: os recursos, a inteligência, exitem; estão aí. Mas ninguém liga…
Rejeitamos a inteligência do alto da nossa ignorância. Jogamos ‘pérolas aos porcos’, como diz Gessinger. Como a cultura vai ser valorizada no Brasil, se não há, pra começar, nem o mínimo de cultura necessário para que se reconheça a cultura como tal?
É a única explicação que tenho para o fato de não termos, sequer, uma biografia desse personagem, um registro de seus passos e sua importância como ser humano. Um registro de seu exemplo.
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Esse é um problema do mundo, é claro. A burrice faz parte da condição humana. Mas nós levamos isso muito a sério… O artista sempre foi um solitário. Sempre lutou sozinho, indo “aonde ninguém mais foi” no território desconhecido da alma. Uma vela acessa num mar escuro e revolto.
E Abujamra conhecia essa solidão. Ele tinha a descrença de quem conhece o ser humano, e sabe quão pouco se pode esperar dele.
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Abujamra faz pensar. Não por ser ou não ser gênio – uma palavra horrível que parece servir apenas para ‘explicar’, isto é, domar, a seriedade que podemos ter – mas por sua amplitude de olhar, sua cultura.
O fato de sua trajetória se ligar ao teatro coloca uma série de questões importantes.
Como Goethe e, surpresa das surpresas, Winnicott, que também tinham essa ligação.
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Primeiro porque sua marca mais destacada seria, antes, uma espécie de realidade. Um realismo agressivo, uma falta de paciência para os jogos sociais.
Mas não está excluído que conhecer a realidade passe exatamente por uma justa apreciação de seu oposto, ou seja, a arte, a mentira, o engano.
É mais ou menos o que Nietzsche, outro ‘realista’ de carteirinha, pensava.
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Imagino Abujamra sempre interpretando – não como mentira, mas como expressão: ele interpretava a si mesmo, dava forma concreta ao personagem que ia se fazendo ao longo dos dias.
É aí que reside sua autenticidade, para mim: não em sua ‘pessoalidade’ – isso qualquer um pode ter -, mas na maneira como ele resolveu transformar sua injustiça pessoal, seu ‘canto’, sua idiossincrasia, numa coisa mais elevada: num personagem.
Essa talvez seja a autenticidade que conseguimos alcançar, nós, humanos: a direção de nossa mentira, de nossa criação. A transformação de nossa “casca” social em arte.
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Não somos livres para ser apenas nós mesmos. Somos muito mais complicados que isso. E mesmo que sejamos, às vezes – nem por isso nos compreendemos… Somos “outro” para nós mesmos, somos um conjunto díspar de seres. Como pretender que ser ‘autêntico’ é algo simples?
Só se for numa autêntica mentira. E Abujamra parece o extremo oposto disso. Justamente como ator, como caso particular de expressão dessa verdade que os gregos já intuíram, qual seja: a de que não há nada por trás da máscara.
Apenas a arte redime o humano, dizia Nietzsche, e isso é realismo puro. O humano é uma mentira. Todos somos uma história, uma novela, bem ou mal contada… (isso sem falar das vezes que apenas atuamos as histórias que outros contam de nós).
“Ser” não é algo que exista apenas no concreto – isto é, sem um pouco de imaginação, de engano… “Ser” apenas acontece na ‘terceira margem’, no transicional. Eis porque o ator carrega algo da essência do ser humano: não porque diz ‘belas verdades’… mas porque mente… de forma veraz.
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