Grav(a)ção – Tatuagem (Chico Buarque)

O bom da obra de arte é que ela é muitas coisas ao mesmo tempo; ela diz várias coisas simultâneas, e o calafrio que às vezes sentimos diante dela é justamente aquele momento em que nos damos conta do abismo que ela implica – a amplitude de significados que carrega, a riqueza, a vida, que ali pulsa.

Essa abertura dos significados em relação ao encontro que fazemos com a obra permite que cada um construa a sua relação com ela; que não será nem mais bela, nem mais verdadeira, em si, mas será talvez a que faça mais sentido para mim.

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Dadas essas premissas, para mim, em “Tatuagem” Chico Buarque fala da mulher em alguns dos seus vários níveis: primeiro, a mulher no contexto de sua relação com um homem, a mulher puro desejo, a mulher que o vitaliza, que se escraviza, que brinca com ele, que é um peso, uma adoração, que o retalha… mas que gosta disso, que nisso se vitaliza, que nisso, justamente, é mestre.

Arriscaria dizer que ele fala, aqui, da ‘natureza’ da mulher – o que não quer dizer que toda mulher deva ser assim, nem que isso resume a mulher, ou menos ainda que a mulher deva ser isso. Uma natureza é uma tendência. Nisso, como em tudo, existe uma margem de transformação permitida pela cultura. Agora – existir a cultura não quer dizer que não exista a natureza.

Acho que ele fala também de como a mulher domina o homem na relação, por ser emocionalmente mais forte. Homens e mulheres entregariam coisas diferentes: enquanto a mulher se entrega mais exteriormente – a ponto de poder parecer uma escrava – o homem, quando se entrega, se entrega emocionalmente. E então é interiormente dominado .

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Falar em “homens”, “mulheres” e “natureza” ainda por cima, é pisar em ovos. Repito que, ao meu ver, a questão não se encerra aí. De nada vale a mulher ser dominante numa relação, por exemplo, se economicamente ela não tem possibilidade alguma de sustento. Os tempos mudam, muda a nossa forma de nos relacionarmos com as coisas, mas, repito, isso não impede que algumas ‘naturezas’ persistam, e que tenhamos que lidar com elas.

Enfim, segue a música. Abaixo, uma versão minha, com a languidez que me pareceu necessária…

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Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem

E também pra me perpetuar
Em tua escrava
Que você pega, esfrega
Nega, mas não lava

Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem

E nos músculos exaustos
Do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta,
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem

Quero ser a cicatriz
Risonha e corrosiva
Marcada a frio
Ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam
O corpo todo
Mas não sentes

https://drive.google.com/file/d/1oWwVFZBZtZOiZyAaFKrWGlhfBpaDlSx7/view?usp=sharing

2 Respostas para “Grav(a)ção – Tatuagem (Chico Buarque)

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