Em uma tarde de outono de 1889 a psicanálise nascia, quando Emmy von N, paciente do então novato médico Sigmund Freud, mandou Freud calar a boca. Na verdade a data precisa me escapa, mas o sentido da fala da paciente foi esse mesmo. Segundo Peter Gay,
“Quando Freud a interrogava com insistência, ela se aborrecia, ‘muito rispidamente’, e pedia que ele parasse de ‘lhe perguntar de onde veio isso ou aquilo, mas que a deixasse contar o que ela tinha a dizer” (Gay, 2010, pg 80)
A genialidade – e modéstia – de Freud consistiu em ouvir o apelo da paciente. E De fato, nesse “cala-te” já estavam prefigurados vários pontos daquilo que viria a ser a clínica psicanalítica: o paciente fala, o analista escuta, adapta-se às demandas do paciente, adota uma postura receptiva, autocrítica, etc.
Entretanto, a análise é feita de algo mais, que Freud no entanto não definiu: o “tato”. Caberia ao analista preencher os vazios da técnica com “tato”. Mas o que exatamente é isso para Freud? Numa carta escrita à Ferenczi em 4 de janeiro 1928, comentando seus trabalhos sobre técnica, Freud assevera que
“[naqueles trabalhos] Eu considerava que o mais importante a ser enfatizado era o que alguém não deveria fazer, demonstrar as tentações que trabalham contra a análise. Quase todas as coisas positivas que alguém poderia fazer eu deixava ao ‘tato’, que foi introduzido por você. Mas o que eu consegui com isso foi que os obedientes não se deram conta da elasticidade dessas discussões e se submeteram a elas como se fossem tabus.” [2]
Chamo a atenção para o termo “elasticidade”. Como se sabe, Ferenczi foi o introdutor da ideia da necessidade de uma certa ‘elasticidade’ da técnica psicanalítica, baseada justamente naquilo que o tato do analista indica – sendo o ‘tato’ definido por ele como a capacidade de ‘sentir com’ o paciente – isto é, como empatia .
No entanto, abrir a análise à empatia implicaria o risco de uma deriva subjetivista, o que Freud justamente critica na sequência da mesma carta:
“Por mais verdadeiro que seja o que você tem a dizer sobre o ‘tato’, essa admissão parece-me ainda mais questionável nessa forma. Todos aqueles que não possuem tato verão nisso a justificativa de uma arbitrariedade, ou seja, de um fator subjetivo, ou seja, a influência de seus próprios complexos incontidos” [3]
Com o que, conclui Freud, “a experiência e a normalidade do analista serão fatores decisivos” [4].
Juntando os pontos temos que para Freud os analistas inexperientes, ainda incapazes de assumir a responsabilidade por certas liberdades técnicas, não devem desviar-se de um certo padrão – por isso devem ser “obedientes”, embora espera-se que não fiquem só nisso… Já analistas mais experientes e saudáveis (psiquicamente falando) podem dar-se ao luxo da elasticidade, do uso da empatia, do tato, na condução dos casos clínicos.
Quem decide? A responsabilidade de cada um, talvez? Isso seria deriva subjetiva de novo. Portanto faz sentido que Freud advogasse publicamente contra o uso do tato, visando uma estratégia de “redução de danos” em relação aos analistas menos experientes, confiando ao mesmo tempo que os analistas experientes assumiriam a responsabilidade de dar alguns passos além da pura obediência.
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Obediência ou não, o fato é que o tato, a empatia, a relação mais pessoal e íntima do analista com o paciente continuou sendo vista como um tabu. Até hoje a imagem predominante do analista é a daquele cara sério, neutro, asséptico, escutando sempre outra coisa daquilo que o paciente diz, na verdade praticamente sempre desconfiando do que o paciente fala – afinal, todo paciente quer manter o sintoma, se beneficiar dele -, etc. Essa visão da análise parece opôr analista e analisando mais do que aproximá-los visando um trabalho comum. O analista se calou, como queria Emmy von N., mas será que ele está realmente ouvindo o paciente?
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[1] PETER GAY, “Freud – uma vida para o nosso tempo”. Companhia das Letras, 2010
[2] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982004000100005#6b
[3] idem ao 2
[4] ibidem
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