Educação, máscaras e a guerra latente de todos os dias

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Olhe à sua volta. Pessoas, pessoas, cada uma empenhada em sua tarefa. Se olhássemos “de fora” talvez não pudéssemos supor que todas estão interconectadas. Porque existe uma distância, existe um espaço. Há um abismo entre cada uma, e as vezes percebemos isso da maneira mais dura.

 

Agora, pense em você mesmo. Pense naquilo que possui: suas roupas, um computador, algumas notas de 100 na carteira, talvez? O que isso vale? Qual o valor dessas coisas? Imagine-se na mesma situação, mas em uma ilha deserta: Seu dinheiro não vale mais nada. Seu computador talvez nem ligue. Suas roupas, mesmo sendo “de marca”, vão lhe abrigar do frio apenas, e mais nada.

 

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Estranha dualidade: por um lado, há um abismo entre nós. Por outro, há inúmeras pontes, elos de ligação, laços tão fortes que, sem uma grande presença humana em nossa volta, milhares de coisas simplesmente perdem o sentido. Assim, para que o dinheiro tenha valor é necessário alguém que o aceite, que o valorize; apenas a aceitação mútua dá a ele funcionalidade. Para que o computador funcione é necessário toda uma rede de energia elétrica, sem falar na internet, indústrias inteiras para montar cada peça… Estamos conectados pelo trabalho de milhões de pessoas, usufruímos de seus serviços, mas ao mesmo tempo estamos longe, muito, muito longe. Numa espécie de ilha deserta.

 

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Já falei em outros posts sobre nossa difícil relação com a realidade. Segundo Winnicott, fomos ludibriados, aliciados para a vida, passando necessariamente por um período de ilusão na infância, aonde nos sentíamos quase como os criadores do universo. Depois veio a dura realidade: aos poucos tivemos que renunciar à nossa posição divina, e fomos desiludidos rumo ao real. O apoio que encontramos em nossos pais, nosso grupo, os ‘outros significantes’ de nosso ambiente, permitiu uma contrapartida à essa “ofensa”. Mas nunca nos refizemos realmente do golpe. É só ver o sucesso que fazem as histórias onde os poderosos entram em declínio e são substituídos pelos humildes – os humildes, com os quais fomos obrigados a nos reconhecer. Todos nos identificamos com essa história, pois todos somos decaídos!

 

Agora imagine esses seres decaídos, esses antigos deuses, tendo de conviver uns com os outros; todos decaídos, todos feridos com a queda, todos mantendo, lá dentro, a antiga crença de que, no fundo, são diferentes, são melhores, são únicos. É claro que, para o outro, minha ‘divindade’ é mais uma ferida grave, assim como eu me ofendo com a ‘divindade’ dele. E se algo dessa divindade foi realizado, então, pior ainda! Inveja, ódio, intriga, agressividade – não é preciso uma pulsão de morte para isso, como queria Freud. Esses sentimentos vêm por conta, são consequências naturais na medida em que estamos frustrados com a realidade, nossa realidade.

 

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Esse quadro, creio, é aquilo que justifica, que dá utilidade, para a educação, a prudência, o respeito: pois o que eles ensinam (e codificam) é uma espécie de sugestão: “não se exponha demais”… Há sempre o risco de abrir velhas feridas, em amigos ou inimigos, e nós – pobres de nós! – nós precisamos tanto do outro… Tudo à nossa volta depende dele, nossa vida depende dele, nós dependemos dele, e nós, no entanto, as vezes, bem que gostaríamos… de manda-lo pro diabo!

 

E então vem a educação. Penso nela como se fosse o resultado de muitas gerações de prudência lidando com o orgulho alheio. Creio que ela está correta: pois quando estamos de bem com nós mesmos, naturalmente somos tolerantes, leves, amigos do outro – nem ligamos para sua ‘divindade’, porque estamos ‘ok’ com nossos próprios louros… mas quando não estamos bem, então… a educação nos leva a nos expressar como se o estivéssemos. Assim, a educação ajuda a manter uma distância entre nós, necessária, focada nos momentos de baixa consistência emocional. Nesse sentido ela se confunde com a prudência: porque, se eu fosse expressar minha insatisfação com todo mundo, quem garante que o outro ia querer – ouvir?

 

Certo, o apoio, a aceitação, a empatia, são o melhor auxílio para situações amargas; em ombros amigos descansamos e revivemos algo daquela velha onipotência, pelo menos com eles, nossos amigos. Mas não podemos pedir isso para qualquer ‘outro’; somente aqueles realmente próximos de nós vão dispor da preocupação e da paciência para estar empaticamente do nosso lado mesmo nos momentos difíceis. Não precisamos ser educados com nossos ‘chegados’; com eles somos expansivos e mandamos o mundo às favas, porque é isso que queremos, porque isso é bom, porque assim nos sentimos mais fortes, sei lá. Mas para todos os outros… educação.

 

Ao escrever isso me dou conta de que o que estou chamando de ‘educação’ quase se confunde com ‘orgulho’, ou com aquela nobreza antiga, segura de si, que apenas raramente deixava cair a máscara, e pela qual os ingleses são famosos até hoje. É sempre a mesma coisa: manter uma certa distância pode ser prudente, e inclusive realista. – “Mas como assim”, dirá o leitor dos dias de hoje”, “manter a máscara seria algo bom?”. – Acho que em certas circunstâncias, sim. Mas isso é assunto pra outro post.

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